terça-feira, 5 de dezembro de 2006

O mais difícil mesmo é ensinar a desler...

De uns tempos pra cá tenho me dedicado a trabalhar com alunos e professores a partir da desconstrução de determinadas “verdades”, tentando ultrapassar o excessivo senso comum que tomou conta do cotidiano das pessoas.

Esse tem sido o maior dos desafios.

Na Educação, temos como proposta maior, desde a década de 70, “tornar o aluno um cidadão consciente e crítico”.

Mas como é que se faz isso? Qual curso de Formação de Professores ensina a ensinar a formar cidadãos conscientes e críticos?

O que temos é algo bastante longe disso. São gerações sendo formadas dentro de algumas formatações curriculares, onde o conteúdo é o que é, porque é o que tem que ser dado... por causa do vestibular... (e aí a escola se distancia mais ainda do seu objetivo principal, se confundindo com cursinhos preparatórios – mas isso é outra história).

Se no Ensino Fundamental e Médio essa é a configuração que temos, a Academia também não se distancia muito disso. Estão aí as diferentes graduações, preparando para os concursos públicos... E, pior, cursos das diversas licenciaturas, onde teoricamente são formados os professores, também parecem não se preocupar muito com o ensinar a ensinar a pensar. Os alunos-mestres têm que se submeter às determinações – nem sempre coerentes – de seus orientadores e das próprias instituições – e, na maioria das vezes, são obrigados a se adequar, porque senão, não conseguem se formar. Decididamente, a Universidade, hoje, não é o melhor lugar para pensar... (mas isso também é outra história).

É evidente que essa situação não foi construída de uma hora para outra, que é fruto de anos e anos de descaso para com o que realmente acontece dentro das salas de aula e com a formação docente, e que ela apenas reflete a falta de expectativa (ou, pelo menos, a pobreza de expectativas) que é oferecida em termos de inserção no mercado de trabalho produtivo.

E aí, a escola permanece repetindo modelos, repetindo, se repetindo incansavelmente. Reproduzindo o que era verdade no século XIX, inclusive no que diz respeito às condições físicas.

Carlos Drummond de Andrade, certa vez, questionou:

Por que motivo as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo? (...) A escola enche o menino de Matemática, de Geografia, de Linguagem, sem, via de regra, fazê-lo através da poesia da Matemática, da Geografia, da Linguagem. A escola não repara em seu ser poético, não o atende em sua capacidade de viver poeticamente o conhecimento do mundo.

Diante desse quadro, o desafio dos educadores é ainda maior, porque remete a algo bastante subjetivo, que é o que chamamos de “visão de mundo”. Porque não significa apenas o compromisso com a discussão das diferentes “visões de mundo”, é mais que isso. É discutir filosófica e ideologicamente tudo o que ocorre. É o educador rever continuamente o seu fazer, é desconstruir as “verdades” a que me referi no início, é duvidar de tudo, é entender a provisoriedade da próprio conhecimento. Não mais receber as informações e o conhecimento como coisas prontas e acabadas, mas acreditar na potencialidade do que está sendo pensado agora, no vir-a-ser. É, principalmente, arriscar. E arriscar-se.

Na prática, isso significa ensinar os alunos a “lerem nas entrelinhas”, a perceberem a intencionalidade de uma ironia, a questionarem o sentido de cada conteúdo trabalhado, a se entenderem como também produtores de conhecimento.

Mas... o professor tem que saber fazer isso... ele tem que aprender a pensar. Ele tem que aprender a ensinar a pensar. Ele tem que aprender a ensinar a desler...

Nesse momento, creio que estamos diante de uma excelente oportunidade de investirmos na educação de educadores. A chegada das “pequenas máquinas” - como costumo chamar os laptops do Projeto “One Laptop per Child - será uma ocasião mais que favorável para essa aplicação de recursos e de esforços. A preparação dos educadores para lidarem com as máquinas é imperiosa! E temos que ir além. Preparar os educadores para formar os tais cidadãos conscientes e críticos continua na ordem do dia.

Ah, já ia esquecendo... só recuperaremos o ser poético de cada criança, quando os professores se perceberem como pessoas ainda capazes de viverem o estranhamento que é o ser da poesia.

Denise Vilardo

2 comentários:

Rosangela Gomes disse...

Puxa!
Outro dia, eu estava pensando na necessidade de algumas palavras serem reinventadas. Ou melhor, na necessidade de se criar novas palavras para melhor definir coisas que já existem e, que pelo uso, desuso ou descaso com que são tratadas passam a não representar mais determinadas situações que fogem ou tentam fugir de um padrão. Usá-las, em determinados contextos é até injusto!
Uma delas, é a palavra escola. Em que contexto ela foi criada? Para cumprir que papel,representar que ideologia? Cabe, no mundo de hoje, usar esta palavra para representar todo tipo de escola? Creio que não... Mas isso é uma outra história!
A outra, é exatamente a palavra leitura. O que é ler? Lê-se o quê? Lê-se para quê?
Aí, eu "leio" esse seu texto e imediatamente volto a este meu pensar.
Precisamos, urgentemente, exercitar a arte de desler.
Desler seria atribuir novos significados às coisas, ir além do que está aparente, buscar mais dúvidas que certezas...
Precisamos aprender a desler tudo: o olhar, o sorriso, o quase sorriso, o brilho novo dos raios de sol, as nuances de verde das folhagens ávidos em descobrir novos significados para cada um deles.
Precisamos, enquanto professores, desler a cara enfadonha de nossos alunos tentando investigar os muitos significados que ela pode ter. Pode ser fruto de uma noite em claro, desinteresse pelo assunto
ou pela trato que estamos dando a ele, pode ser um desejo de ir mais além, pode ser apenas um código aprendido (porque aluno que é aluno deve ter determinada cara ou postura, não deve "dar mole" pro professor). Houve uma época em que os alunos aprenderam que sentar reto, olhar pra frente, com o olhar fixo no professor era sinal de interesse, mesmo que sua cabeça não estivesse nem aí pra aula, seu corpo mostrava o contrário. Não é verdade? Por que o oposto também não pode acontecer?
Desler, é abrir-se pro inusitado, é antenar-se com a subjetividade das palavras, posturas, expressões faciais, fotos etc.
Desler é dizer não à linearidade das respostas certas e
abrir-se para o que está oculto.
Desler, é despir-se da vaidade do intelectual e vestir-se com a ignorância dos sábios.
Desler, é viver da forma como Leila Pinheiro canta: "afinar o instrumento, de dentro pra fora, de fora pra dentro".
No momento em que nós, educadores, ao menos ousarmos a desler a nós mesmos, descobriremos que nosso espaço é a desescola e que ensinar a desler não é o mais difícil. Basta seguir seu desrumo, sendo.
E aí, a poesia viraria uma linguagem universal.
Obrigada, Dê, por suas palavras!

Denise Vilardo disse...

Rô,

Olha que maravilha que encontrei!
É de um poeta, chamado Izacyl Guimarães Ferreira.

poesia


(ficha para Paulo Freire)


põe a palavra dizendo
o que antes não dizia


põe a palavra fazendo
o que antes não fazia



Outra leitura


(ficha para Paulo Freire)


Tudo é possível. Tudo é nexo e vínculo
de aprendizagem, ímpeto no pulso
articulando a máquina do mundo,
nossa herança de chão e de linguagem.
Dizemos mesa e ela se faz, madeira
onde pomos o pão e as cartas, círculo,
ou outra forma que pensemos juntos.
Dizemos rua, é rumo e se povoa.
A travessia se ilumina e é páscoa.
Tudo é possível amorosamente.