terça-feira, 5 de dezembro de 2006

As profissões invisíveis

Há algum tempo saiu uma reportagem numa dessas revistas semanais, contando sobre a experiência de um psicólogo, estudante de mestrado na USP.

Durante um bom tempo, não lembro exatamente quanto, ele se vestia de gari e ficava varrendo o campus universitário. A experiência serviu de pesquisa para a sua dissertação, que pretendia discorrer sobre as “profissões invisíveis”*.

O estudante ficou entre assustado e deprimido, porque seus colegas e professores passavam por ele e sequer o cumprimentavam, não o reconheciam naquele uniforme, simplesmente porque não percebiam a sua presença.

O professor da Universidade Federal de Sergipe, Doutor Marcus Eugênio, em recente entrevista aos jornalistas Paloma Abdallah e Wellington Nogueira, diz que existem basicamente duas teorias para explicar as causas da invisibilidade social.

A primeira explica a invisibilidade a partir da percepção dos indivíduos. As pessoas estariam tão familiarizadas com o ambiente, que ele não produziria qualquer tipo de estímulo nelas. Assim, como um pedinte já faz parte da paisagem do centro das grandes cidades, muitas vezes passamos por eles e não nos damos conta. Segundo ainda o mesmo professor, a outra teoria utilizada pela Psicologia é a da banalização. Essa tem a ver com a despersonalização dos indivíduos. Muito utilizada no exercício de certas profissões, como por exemplo, os médicos, quando tratam seus pacientes pelo número do quarto em que estão internados ou pela doença de que o paciente é portador. Ou, ainda, quando os professores “conhecem” seus alunos pelo número da ficha de chamada.

Trouxe essa discussão para os meus alunos – turma de adultos que já trabalham na área das Telecomunicações – e que, pressionados pelas firmas, vêm buscar o curso técnico. E foi uma discussão muito rica, com tristes constatações, na medida em que eles se perceberam como parte desse grupo de profissionais “invisíveis” todo o tempo, porque trabalham nas ruas, pendurados nos postes, ou enfiados nos subterrâneos das cidades.

Muitas outras profissões e outras tantas ocupações trazem a marca da invisibilidade. E são, na maioria da vezes, praticadas por quem nos assegura limpeza urbana, socorro de saúde, segurança, informação e alimentação. São os lixeiros, enfermeiras, carteiros, guardas de trânsito, policiais, repórteres, feirantes e cozinheiros profissionais.

O que não nos causa orgulho algum é a confirmação de que a invisibilidade social atinge todas as profissões que na, escala social, são consideradas inferiores.

São pessoas que trabalham diariamente, têm responsabilidades e, no entanto, só o que se enxerga é o que está fora delas, é o que elas produzem, é o serviço que elas prestam. E, só as olhamos, se ficarmos insatisfeitos com a qualidade do serviço oferecido.

O ser humano tem que vir em primeiro lugar, sempre. Não dá mais para ficarmos errando tanto...


*Seu estudo deu origem ao livro “Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social”. E seu nome é Fernando Braga da Costa.


Denise Vilardo

O mais difícil mesmo é ensinar a desler...

De uns tempos pra cá tenho me dedicado a trabalhar com alunos e professores a partir da desconstrução de determinadas “verdades”, tentando ultrapassar o excessivo senso comum que tomou conta do cotidiano das pessoas.

Esse tem sido o maior dos desafios.

Na Educação, temos como proposta maior, desde a década de 70, “tornar o aluno um cidadão consciente e crítico”.

Mas como é que se faz isso? Qual curso de Formação de Professores ensina a ensinar a formar cidadãos conscientes e críticos?

O que temos é algo bastante longe disso. São gerações sendo formadas dentro de algumas formatações curriculares, onde o conteúdo é o que é, porque é o que tem que ser dado... por causa do vestibular... (e aí a escola se distancia mais ainda do seu objetivo principal, se confundindo com cursinhos preparatórios – mas isso é outra história).

Se no Ensino Fundamental e Médio essa é a configuração que temos, a Academia também não se distancia muito disso. Estão aí as diferentes graduações, preparando para os concursos públicos... E, pior, cursos das diversas licenciaturas, onde teoricamente são formados os professores, também parecem não se preocupar muito com o ensinar a ensinar a pensar. Os alunos-mestres têm que se submeter às determinações – nem sempre coerentes – de seus orientadores e das próprias instituições – e, na maioria das vezes, são obrigados a se adequar, porque senão, não conseguem se formar. Decididamente, a Universidade, hoje, não é o melhor lugar para pensar... (mas isso também é outra história).

É evidente que essa situação não foi construída de uma hora para outra, que é fruto de anos e anos de descaso para com o que realmente acontece dentro das salas de aula e com a formação docente, e que ela apenas reflete a falta de expectativa (ou, pelo menos, a pobreza de expectativas) que é oferecida em termos de inserção no mercado de trabalho produtivo.

E aí, a escola permanece repetindo modelos, repetindo, se repetindo incansavelmente. Reproduzindo o que era verdade no século XIX, inclusive no que diz respeito às condições físicas.

Carlos Drummond de Andrade, certa vez, questionou:

Por que motivo as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo? (...) A escola enche o menino de Matemática, de Geografia, de Linguagem, sem, via de regra, fazê-lo através da poesia da Matemática, da Geografia, da Linguagem. A escola não repara em seu ser poético, não o atende em sua capacidade de viver poeticamente o conhecimento do mundo.

Diante desse quadro, o desafio dos educadores é ainda maior, porque remete a algo bastante subjetivo, que é o que chamamos de “visão de mundo”. Porque não significa apenas o compromisso com a discussão das diferentes “visões de mundo”, é mais que isso. É discutir filosófica e ideologicamente tudo o que ocorre. É o educador rever continuamente o seu fazer, é desconstruir as “verdades” a que me referi no início, é duvidar de tudo, é entender a provisoriedade da próprio conhecimento. Não mais receber as informações e o conhecimento como coisas prontas e acabadas, mas acreditar na potencialidade do que está sendo pensado agora, no vir-a-ser. É, principalmente, arriscar. E arriscar-se.

Na prática, isso significa ensinar os alunos a “lerem nas entrelinhas”, a perceberem a intencionalidade de uma ironia, a questionarem o sentido de cada conteúdo trabalhado, a se entenderem como também produtores de conhecimento.

Mas... o professor tem que saber fazer isso... ele tem que aprender a pensar. Ele tem que aprender a ensinar a pensar. Ele tem que aprender a ensinar a desler...

Nesse momento, creio que estamos diante de uma excelente oportunidade de investirmos na educação de educadores. A chegada das “pequenas máquinas” - como costumo chamar os laptops do Projeto “One Laptop per Child - será uma ocasião mais que favorável para essa aplicação de recursos e de esforços. A preparação dos educadores para lidarem com as máquinas é imperiosa! E temos que ir além. Preparar os educadores para formar os tais cidadãos conscientes e críticos continua na ordem do dia.

Ah, já ia esquecendo... só recuperaremos o ser poético de cada criança, quando os professores se perceberem como pessoas ainda capazes de viverem o estranhamento que é o ser da poesia.

Denise Vilardo

Educação se faz com o corpo inteiro

"Falta à escola abordar o sentido da existência"
Frei Betto

Nunca se falou tanto na necessidade de uma escola plural, interdisciplinar, multicultural, holística. Uma escola que cuide da formação de um “ser integral”.

E, se até há alguns anos, essa necessidade era apontada pelos estudiosos da Educação numa concepção totalizante do processo educacional, baseada na não-fragmentação do conhecimento e no entendimento de que os seres humanos não são formados apenas de cognição, hoje é também uma exigência do mercado de trabalho. Algumas empresas, atualmente, no seu processo seletivo, pretendem averiguar, inclusive, a capacidade de sustentação emocional dos candidatos, além do seu potencial para trabalhar em equipe, dentre outras atitudes.

Mas, paradoxalmente, e por mais que estejamos vivenciando essa realidade, a escola – filha direta e dileta da tradição cartesiana – só se preocupa com a quantidade de informações que consegue passar (passar sim, e não construir). Ela continua se restringindo apenas à transmissão do patrimônio universalmente constituído, ignorando a reflexão sobre o contexto em que vivemos e pouco se importando com o potencial de modificação da realidade.

Essa idéia me faz lembrar de uma história infantil, de Ruth Rocha, chamada “Quando a escola é de vidro”, que começa assim:

“Naquele tempo eu até que achava natural que as coisas fossem daquele jeito. Eu nem desconfiava que existissem lugares muito diferentes... Eu ia pra escola todos os dias de manhã e quando chagava, logo, logo, eu tinha que me meter no vidro. É, no vidro! Cada menino ou menina tinha um vidro e o vidro não dependia do tamanho de cada um, não! O vidro dependia da classe em que a gente estudava. Se você estava no primeiro ano ganhava um vidro de um tamanho. Se você fosse do segundo ano seu vidro era um pouquinho maior. E assim, os vidros iam crescendo á medida em que você ia passando de ano. Se não passasse de ano era um horror. Você tinha que usar o mesmo vidro do ano passado. Coubesse ou não coubesse. Aliás nunca ninguém se preocupou em saber se a gente cabia nos vidros. E pra falar a verdade, ninguém cabia direito.”

Ao dicotomizar o sentido da aprendizagem, do sentido da existência, a escola separa o espaço do conhecimento do espaço da vida, dificultando a reflexão sobre o cotidiano. Como se o aumento da violência urbana não tivesse nada a ver com as políticas salariais, sociais e outros ais; como se a poluição do meio ambiente não tivesse nada a ver com interesses econômicos inconfessáveis.

Vivi uma experiência que exemplifica bem essa questão: fui chamada para dar aula particular para um aluno de 15 anos, que estava cursando, na época, a sétima série de um colégio da classe alta do Rio de Janeiro. Ele era redator-chefe do jornalzinho do colégio e estava, ironicamente, com notas péssimas em Língua Portuguesa. Ah, ele também tinha uma banda de rock, onde era baterista. No nosso primeiro encontro, pedi que ele me falasse um pouco de sua experiência de músico. Em seguida, pedi que escrevesse sobre esse fato. Imediatamente e, diga-se, com muita rapidez e fluência, escreveu um ótimo texto de duas páginas. Li tudo e propus que começássemos a analisar o primeiro período do seu texto. Ele me olhou, muito surpreso, sem entender exatamente o que eu pedia que fizesse, e comecei a explicar, dizendo que iríamos verificar, naquele parágrafo, quais elementos da estrutura sintática estavam presentes, tais como: sujeito, predicado, adjuntos, tipos de verbos etc. Ao que ele, absolutamente surpreendido, me perguntou: e quando eu escrevo tem isso?! Ou seja, para ele, o conteúdo da disciplina Língua Portuguesa não tinha a menor relação com o que ele falava ou escrevia. Isso é assustador! Não se tratava de um aluno desinformado, muito pelo contrário, tanto era atento ao mundo e competente na desenvoltura com a Língua, que escrevia regularmente no jornal do colégio. Mas, vivia massacrado pelas “orações subordinadas substantivas objetivas diretas”, que não faziam o menor sentido para ele.

Continuamos educando para a competitividade e para o sucesso. Para o “tem que dar certo, sempre, a qualquer custo”. Permanecemos ignorando as questões fundamentais dos seres humanos, como se os medos, frustrações, fracassos, morte não fizessem parte da vida dos nossos alunos. E, diante dessas situações, a instituição se cala e finge que elas não acontecem.

Um amigo meu sempre diz que, se não fôssemos perder todos os alunos do colégio que, juntos, coordenamos, deveríamos colocar uma faixa na frente do prédio, onde se leria: “Aqui preparamos para o fracasso”. Porque, fundamentalmente, nosso compromisso é com o ser humano. E se conseguirmos ajudar a formar o caráter e a personalidade dos nossos alunos para lidar com as adversidades da vida, estaremos cumprindo, inequivocamente, o nosso papel.

A escola continua distante do mundo e, pior, distante, dos próprios seres que a constituem.

Mais do que nunca, é preciso re-humanizar essa instituição formadora de homens e mulheres. Precisamos de pessoas sabidas, mas precisamos, fundamentalmente, de pessoas dignas, com boa formação de caráter, éticas e solidárias. É preciso socializar valores de justiça e respeito.

Talvez seja necessário lembrar que o ato de ensinar, supõe refazermos o caminho que nos trouxe até um determinado conhecimento. Talvez seja bom lembrar, também, que o sentido etimológico da palavra pedagogo é aquele que conduz, o guia, o mestre. E aí teremos aquele que retoma um caminho já percorrido, ampliando o já conhecido e formando novas concepções.

O ser humano já sabe do que é capaz de realizar. Só está faltando fazer melhor.

Denise Vilardo